Já faz um tempo que assisti ao filme de um super-herói e sua filha mutante, produção hollywoodiana de alto custo recheada de efeitos especiais e ovacionada como o thriller do momento. Claro que uma película assim tem os elementos que a caracterizam: cenas de suspense, explosões, perseguições mirabolantes, sangue e pancadaria com um nível elaborado de produção e efeitos. Mas confesso que, apesar da expectativa e previsão do que vinha pela frente ao me sentar na cadeira do cinema, fiquei estarrecido com a crueza e o “realismo” das cenas de violência mostradas no filme. Como se algo indigesto, áspero e corrosivo tivesse invadido numa velocidade espantosa meus sentidos.
O filme mostrava um super-herói decadente, soturno e autodestrutivo, com a capacidade e a empatia de envolver o espectador em seu estado de angústia e falta de saída. A banalização das sequências de assassinatos com requintes de crueldade, decapitações, garras afiadas transpassando corpos e perfurando crânios, entre outras atrocidades praticadas por personagens frios e sortidos, me fizeram pensar que tudo aquilo que estava assistindo ficaria guardado em algum lugar da memória. E que uma legião de pessoas estavam se alimentando ou haviam se alimentado com aquelas imagens nas salas de cinema do mundo, onde o filme era exibido simultaneamente.
A sensação provocada por aquelas imagens e sons absorvidos no cinema me trouxeram a certeza que as impressões sensoriais, dependendo de sua quantidade, forma e conteúdo podem ser armazenadas como se fossem nutrientes. Consumimos de alguma maneira “alimentos” visuais, sonoros, narrativos e cognitivos a partir do que vemos, ouvimos e sentimos em nosso corpo. Como se um filme, série, novela ou um telejornal fosse um tipo de comida, recheada ou não de toxinas e impressões negativas, algo que pode se inscrever de alguma forma na página da memória.
Isso não quer dizer que devemos ser apáticos e alienados às guerras, e outras mazelas provocadas pela “civilização” ocidental ou que deixemos de assistir produções cinematográficas que nos façam refletir sobre a violência, o fascismo, a destruição ambiental e as injustiças sociais que atingem a humanidade. Dependendo do roteiro e da sequência do que assistimos, podemos adquirir empatia, humanidade e uma consciência mais clara sobre os conflitos presentes na história, na realidade social e no interior dos seres humanos.
É fácil constatar em grande parte das produções midiáticas que, além da manipulação e intencionalidade política presente em muitas coisas que assistimos, há uma predominância de informações sensoriais carregadas de medo, tensão, desespero, intrigas e tragédias. Informações com a capacidade de criar um clima coletivo de insegurança, no qual predomina os aspectos negativos e sórdidos das ações humanas.
Muitas séries, novelas e filmes podem funcionar, em mentes doentias, como verdadeiras escolas de maldade, como se as coisas boas, virtuosas, construtivas, solidárias e alegres não estivessem tão intensamente presentes na vida social, humana e natural do planeta. Para utilizar um termo freudiano, preferimos alimentar nosso instinto de morte (Tânatos) que o nosso instituto de amor (Eros).
Até que ponto informações sensoriais influenciam o estado de espírito individual e coletivo das pessoas? Sabemos, por exemplo, por meio dos estudos de musicoterapia que os sons têm o poder de curar traumas, depressão, insônia e uma série de doenças. Na França, a aromaterapia é uma ciência tradicional estudada e ensinada em prestigiadas universidades, nas quais professores capacitados ensinam o poder medicinal dos óleos essenciais extraídos de flores, plantas e de outros elementos da natureza.
A percepção da influência do mundo sensorial sobre o nosso corpo, sobre nossas emoções, sobre o nosso estado de espírito, seja ele transitório ou permanente, tem íntima relação com as informações que recebemos do mundo exterior. Por isso, precisamos ter consciência e discernimento para avaliar as impressões e informações que nos chegam, filtro para guardar as portas dos sentidos contra as formas negativas de alimentos sensoriais que circulam de forma invasiva no nosso dia a dia, seja quando dirigimos, olhamos o anúncio de um outdoor ou quando absorvemos o turbilhão de informações que circulam nos sites, jogos e aplicativos das redes sociais.
Depois que assisti aquele filme fiquei pensativo se vale a pena abrir nossa mente, consciente e inconsciente, a qualquer tipo de informação que chega invasivamente ou permissivamente até nós. Até que ponto este tipo de informação presente em tantos filmes, jogos e outras fontes naturalizam a violência, transferindo para espírito e o viver das pessoas a impressão de um futuro sombrio, distópico e sem saída. Até que ponto a pulsão exagerada de morte explorada pelas produções cinematográficas e outras fontes criam uma consciência coletiva marcada pela depressão, o medo, o sórdido e o mal, sem o contraponto de tudo que é solidário, saudável e bom nas ações humanas.
Vejo que um filtro apurado e um olhar mais crítico sobre a enxurrada de informações que tentam invadir e alimentar nossos sentidos é fundamental, para continuarmos acreditando na possibilidade de construção de um futuro comum e melhor para todos e na natureza boa, transformadora e luminosa que ainda habita o ser humano.