A triste partida de Adir Sodré numa manhã de agosto de 2020 causou perplexidade na alma dos seus contemporâneos. Confesso que também fiquei perplexo com a morte de Adir e na hora me vieram à lembrança os nossos papos e diálogos no seu ateliê do bairro Pedregal, em Cuiabá. Ele adorava produzir sua arte ouvindo música de boa qualidade que ia de MPB ao rock progressivo de Santana. Mas o mais bacana mesmo era ouvir suas reflexões políticas e intelectuais sobre as mazelas do mundo. Era um ser humano que vivia à frente do seu tempo.
Recebi o comunicado através do compartilhamento de uma notícia informando que o artista plástico Adir Sodré, de 58 anos, um dos mais renomados de Mato Grosso, havia sofrido um infarto na frente da casa onde morava. Fiquei imaginando: morrer de ataque fulminante deve ser bom: não há tempo para o sofrimento.
Confesso que não gosto da ideia da morte. Apesar de não ter medo da morte, não gosto de pensar nela. Assim como acho uma viagem sobrenatural pensar em ‘projetos de salvação cristã’. A morte não é a parte mais bela da vida. A parte mais bela da vida é o legado que produzimos enquanto vivemos.
J.R.R. Tolkien, na saga ‘O Senhor dos Anéis’, revela que “muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver”. Mãe, por exemplo, é uma injustiça morrer. Nesta perspectiva, a poética drummondiana revela porque as mães não deviam morrer:
Por que Deus permite
Que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite
É tempo sem hora
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E chuva desaba
Veludo escondido
Na pele enrugada
Água pura, ar puro
Puro pensamento
Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio
Mãe, na sua graça
É eternidade
Por que Deus se lembra
– Mistério profundo –
De tirá-la um dia?
Fosse eu rei do mundo
Baixava uma lei:
Mãe não morre nunca
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora
Será pequenino
Feito grão de milho
O que mais acho chato nas reflexões sobre a morte é que sabemos que um dia a vida acaba, e a gente nunca está preparado para perder alguém querido. Pai e mãe então são injustiças e pecado mortal praticado por Deus contra os filhos. Por outro lado, a morte de um filho é um arrebento das dores do mundo da existência humana. Já a perda de um amigo querido, é um ato desumano carregado de grande abismo. Nestes prismas, Tolkien está politicamente correto: muitos que vivem merecem a morte; e alguns que morrem merecem viver. Mas o exagerado do Cazuza tinha uma reflexão belíssima sobre esse prisma: “Os idiotas são mais felizes. Eles não sabem que vão morrer”.
Neste cenário reflexivo da morte de Adir de Sodré, a literatura de Markus Zusak, em “A menina que roubava livros”, nos revela que “quando a Morte conta uma história, você deve parar para ler”. Neste contexto, as leituras que faço com a morte de Adir são as seguintes: particularmente convivi com Adir e a família “nas entranhas do bairro Pedregal”, que fica localizado nos fundos da Universidade Federal de Mato Grosso. Considero Adir uma das maiores revelações das artes plásticas do Ateliê Livre da Universidade Federal de Mato Grosso, assim como Gervane de Paula, Nilson Pimenta, Benedito Nunes, entre outros, que a crítica de arte Aline Figueiredo Espíndola revela que em Mato Grosso arte também é mato.
As artes plásticas de Adir Sodré encontram-se presentes para além do seu tempo de existência. Adir foi um artista carregado de humanidade com um potencial sobrenatural e tem sua arte reconhecida não apenas em Mato Grosso, mas no Brasil e no Museu de Arte Moderna de Paris. Sua arte revela registro da vida cotidiana com representações do Pedregal, dos quintais cuiabanos, da estética do cerrado de Mato Grosso, e dos artefatos da cultura e identidade cuiabana. A arte de Adir Sodré revela também sua admiração pelo pintor francês Henri Matisse, por meio das cores puras e os elementos decorativos em obras nas quais o erotismo é muito presente, como em “Falos e Flores” (1986) ou “Orgia das Frutas” (1987).
A mim, as artes plásticas de Adir Sodré sempre encantaram meu olhar e alma carregada de orgasmo na contemplação das suas obras que representam elementos exclusivos do seu estilo como a melancia-vagina, montanha-seios, pênis-borboletas, mangas-tetas, num transbordante processo de humanização estética da natureza mato-grossense.
Na arte de Adir Sodré está presente o perspectivismo ameríndio dos pressupostos a respeito da síntese conceitual operada por Eduardo Viveiros de Castro para tratar de uma importante matriz filosófica amazônica no que se refere à natureza relacional dos seres e da composição do mundo. Em sua produção, destacam-se os temas relacionados à cultura regional e a questões acerca dos povos indígenas e quilombolas, à invasão causada pelo turismo em determinadas regiões do Brasil e ao consumismo, no quadro “Dolores Descartável” (1984). De forma geral, nas artes plásticas produzidas por Adir Sodré, os seres naturais e culturais são providos de alma aparentados como humanos representados na forma de animais, frutas, entre outras modalidades de representações humanas do movimento permanente da contra-antropologia.
É neste contexto do perspectivismo que gostaria de registar que na década de 80 tivemos o prazer de, ao lado dos amigos que a vida nos dá: Zezinha, Ana, Rosa, Helinho, Henry, Joel Sabino, Jorilda Sabino (que era reconhecida como Cinderela Negra do Pedregal), Sapo, Lourival Abich, Antônio Sodré (o irmão poeta do Adir), entre outros companheiros dos movimentos sociais constituídos no Pedregal, que juntos editávamos um jornal comunitário denominado “O Coletivo” – que era distribuído gratuitamente no transporte coletivo de massa que fazia linha do centro para o bairro –, todo ilustrado manualmente pelo Adir Sodré. Depois de o layout pronto, Adir ilustrava a capa e as notícias principais.
Por fim, gostaria de refletir o pensamento de Victor Hugo que assegura que ‘A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace. Como a vida é feita de encontros e muitos desencontros, para finalizar esse manifesto da triste partida de Adir Sodré, quero registrar também um poema de Antônio Sodré, irmão de Adir que nos deixou em 19/02/2011, vítima de um infarto fulminante, depois que se sentiu mal durante um sarau no bairro Coophema, em Cuiabá.
Sodrezinho, como o chamávamos carinhosamente, foi um artista de Cuiabá que se autodenominava "El poeta de la transmutación". Além de poeta, Sodré transitava pela música, artes cênicas e artes plásticas. Para fechar este manifesto pela arte, reflita os abismos humanos da sua transmutação poética.
abismumano
um abismo me separa
dos meus próprios semelhantes ...
mas se tento chegar mais perto deles
sinto estar mais longe
do que estava antes!
é que entro cada vez mais
para dentro de mim mesmo
numa viagem, que se afasta da chegada,
pois vou pra lugar nenhum
numa lenta caminhada ...
... que me diminui
não sou, pois nunca fui...
... apenas me desfaço
como uma estátua que rui! ...
(Antônio Sodré, 2005)