As discussões em curso no Ministério da Saúde para revisar uma centena de portarias que estruturam a política de saúde mental no País evidenciaram um 'racha' entre a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e os profissionais da categoria. Mais de 900 psiquiatras se uniram para fazer frente à entidade representativa da classe e às diretrizes defendidas pela ABP. Isso porque a associação participa do grupo de trabalho instituído pela pasta para promover uma reforma no modelo de atendimento atual.
No manifesto, os profissionais atribuem à Associação Brasileira de Psiquiatria a defesa de 'interesses corporativos e mercadológicos' e criticam o documento Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil divulgado pela entidade.
"É de longa data o distanciamento dessa Associação dos interesses em um cuidado amplo e democrático para a população. O documento reeditado atualmente, mas há pelo menos seis anos divulgado para seus membros, só teve espaço pelo momento de extrema vulnerabilidade provocada pela pandemia e pela ausência de direcionamento técnico no Ministério da Saúde", diz um trecho do manifesto.
A ABP é a única instituição habilitada a fazer a certificação e conferir o título de especialista em psiquiatria. Na ponta, profissionais dissidentes veem a associação como uma 'indústria de produção de títulos' que monopoliza as discussões sobre saúde mental em nome de um 'projeto político' benevolente a escritórios particulares, aos convênios e à medicalização.
"Alegando falar em nome da ciência, a ABP o faz de forma tão precária que mal disfarça os interesses corporativos e mercadológicos que a movem. Ao mesmo tempo, coloca-se em posição insustentável por seu autoritarismo: atribui-se o direito de formular por si só toda uma política pública de saúde mental, desdenhando o diálogo com os múltiplos segmentos envolvidos, que exigem e merecem voto e voz", registra o manifesto.
Profissionais ouvidos pelo Estadão temem que as discussões em curso no Ministério da Saúde desemboquem em medidas para enfraquecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPs) do Sistema Único de Saúde (SUS), que segue um modelo integrado, territorializado e flexível desde a atenção básica. Nessa mesma linha, em julho, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu regulamentar as chamadas comunidades terapêuticas (CTFs) entidades que atuam junto a usuários de drogas em situação de tratamento e são, em sua maioria, ligadas a igrejas e intransigentes na defesa da abstinência - rechaçando a perspectiva da redução de danos.
O Ministério da Saúde informou que as portarias que estruturam a política de saúde mental estão sob escrutínio de um grupo de trabalho composto, além da APB, por representantes do Ministério da Cidadania, do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). A pasta alega que as regras estão 'obsoletas'.
Já a Associação Brasileira de Psiquiatria diz que o modelo de assistência em saúde mensal precisa ser 'adaptado à realidade' e que os ambulatórios especializados, excluídos da reforma aprovada em 2001 por 'questões ideológicas', nas palavras da entidade, precisam ser retomados.
"A ABP defende a nova Política Nacional de Saúde Mental, votada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do SUS, com representação dos governos federal, estaduais e municipais, publicada em dezembro de 2017 por meio da Resolução CIT Nº 32/201 e da Portaria MS Nº 3.588/2017. Vale ressaltar que tais mudanças, que completam três anos agora, precisam ser amplamente implementadas para que a desassistência aos pacientes com transtornos mentais, fruto de ideologias irresponsáveis, seja finalizada em nosso país", diz um trecho da manifestação publicada no site da associação.
Com a palavra, o Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde esclarece que, atualmente, existem mais de 100 portarias relativas à saúde mental que estabelecem diretrizes para o tratamento e a assistência dos pacientes - e de seus familiares - com necessidades relacionadas a transtornos mentais e com quadros de uso nocivo e dependência de substâncias psicoativas. Após minuciosa análise de técnicos e especialistas da área, observou-se que muitas dessas portarias estão obsoletas o que confunde gestores e dificulta o trabalho de monitoramento e a efetiva consolidação das políticas de saúde mental.
Com o intuito de tornar a assistência à saúde mental mais acessível e resolutiva, deve-se levar em consideração a análise de indicadores negativos nessa área, como o crescimento das taxas de suicídio nos últimos 15 anos no Brasil, com agravamento de lesões autoprovocadas; o aumento de indivíduos em situação de rua com transtornos mentais graves; o isolamento social de pacientes com transtornos mentais graves; o aumento da mortalidade desses pacientes; a superlotação nos serviços de emergência; o aumento do uso de drogas e dependência química no país; o crescimento e a expansão das cracolândias em grande parte das cidades brasileiras; e o aumento de trabalhadores afastados, pela Previdência Social, principalmente por depressão e dependência química.
Nesse contexto, o Ministério da Saúde instituiu um grupo de trabalho com representantes do Ministério da Cidadania, do Conselho Federal de Medicina (CFM), da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), encarregado de analisar, discutir, aprimorar, revogar e criar novos instrumentos para a garantia do cumprimento da nova Política Nacional de Saúde Mental, aprovada pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em dezembro de 2017 por meio da Resolução CIT nº 32/201 e da Portaria MS nº 3.588/2017.
Cabe informar, ainda, que, na nova atualização proposta, não há sugestão de fechamento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e dos Consultórios de Rua. Sobre as Residências Terapêuticas, por não se tratarem de equipamentos médicos e serem destinadas, exclusivamente, ao acolhimento e reabilitação social, discute-se a sua transferência para o âmbito do Ministério da Cidadania.
Vale destacar também que o Ministério da Saúde, por meio de gestão tripartite, promoveu uma série de ações no âmbito da saúde mental durante a pandemia da Covid-19, como: videoaulas para profissionais da saúde e sociedade, com conteúdo disposto no link: https://coronavirus.saude.gov.br/capacitacao; ações de educação em saúde em defesa da vida, com a promoção de cursos de prevenção do suicídio e da automutilação na modalidade de educação a distância, disponíveis na plataforma prevencaoevida.com.br; instituição do Comitê Gestor da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio; ampliação de serviços de saúde mental no SUS (Portarias 2.451 e 2.452, de 16 de setembro de 2020); repasse de R$ 650 milhões aos municípios para aquisição de medicamentos essenciais (Portaria 2.516, de 21 de setembro de 2020); entre outras.
Estão também em fase de elaboração as seguintes ações: criação de serviço telefônico para suporte em saúde mental - linha 196; elaboração de programa de treinamento para profissionais do atendimento 196; elaboração de programa de treinamento para profissionais da Atenção Primária à Saúde em consulta psiquiátrica; e treinamento de profissionais médicos e enfermeiros do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em atendimento de urgência a doentes psiquiátricos.
Por fim, o Ministério da Saúde entende que a construção de uma rede de assistência à saúde mental essencialmente segura, eficaz integral, humanizada, com abordagens e condutas baseadas em evidências científicas, e norteada por especialistas da área da saúde é um processo organizacional contínuo, que requer monitoramento constante e zelo com o investimento público.
Com a palavra, a Associação Brasileira de Psiquiatria
A Diretoria da ABP vem a público revelar sua surpresa e indignação pelas informações veiculadas em reunião realizada pela Câmara Técnica do CONASS. Na reunião, foram feitas afirmações sobre mudanças na área de saúde mental que seriam realizadas pelo Ministério da Saúde, descritas como "extinção" de todas as portarias relacionadas à Saúde Mental, e apoio da ABP ao fechamento dos CAPS, das Residências Terapêuticas, causando dificuldades de assistência às pessoas com transtornos mentais.
O documento apresentado pelo CONASS relaciona a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Tais informações são inverídicas e têm sido divulgadas irresponsavelmente. Além disso depreciam o nome da Associação que, ao contrário, tem em suas diretrizes publicadas em parceria com outras instituições - ABIPD, SBNp, AMB, FENAM e CFM - uma proposta de modelo em assistência em saúde mental muito diferente dessas afirmações e apresentadas a todos.
A ABP defende a nova Política Nacional de Saúde Mental, votada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do SUS, com representação dos governos federal, estaduais e municipais, publicada em dezembro de 2017 por meio da Resolução CIT No 32/201 e da Portaria MS No 3.588/2017. Vale ressaltar que tais mudanças, que completam três anos agora, precisam ser amplamente implementadas para que a desassistência aos pacientes com transtornos mentais, fruto de ideologias irresponsáveis, seja finalizada em nosso país.
Em relação aos áudios, vídeos montados e às notícias falsas, a Associação Brasileira de Psiquiatria informa que já estão sendo adotadas as medidas jurídicas cabíveis buscando a responsabilização legal dos responsáveis.
Com a palavra, o Conselho Nacional de Saúde
O Conselho Nacional de Saúde (CNS), por meio da Comissão Intersetorial de Saúde Mental (Cism), vem a público repudiar propostas de revisão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e de mudanças no modelo assistencial em saúde mental, com base no documento "Diretrizes para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil". O documento representa retrocessos sustentados por um modelo biomédico psiquiátrico centralizador e hospitalocêntrico diante do processo de Reforma Psiquiátrica, o Modelo de Atenção Psicossocial e a Desinstitucionalização no Brasil.
A Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas vem sofrendo ataques constantes desde sua elaboração, aprofundados nos últimos 5 anos, por meio do desmonte da Raps e do fortalecimento de políticas segregadoras, marcadas pela ascensão das comunidades terapêuticas e edição de normativas e de financiamento público voltados à internação da população em situação de rua e de adolescentes. Isso desconsidera o processo histórico e político-legislativo de avanços de uma Política desinstitucionalizadora e antimanicomial, conquistada por ampla mobilização e participação social.
Não podemos permitir mais uma vez ameaças de retrocessos, num contexto de crise econômica e sanitária em decorrência da pandemia da Covid-19, em que milhões de pessoas estão perdendo suas vidas, vivenciando processos de adoecimento, desemprego, precarização do trabalho e outros inúmeros obstáculos. Consequentemente, agravando as questões da saúde mental e aumentando as necessidades de cuidados.
Temos uma Política de Saúde Mental, Álcool e outras drogas sustentada por quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental, pela Lei nº 10.216/2001 e pela Lei Brasileira de Inclusão, largamente reconhecidas no cenário internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como referência de reestruturação da assistência em saúde mental no mundo, dadas suas marcas civilizatórias pautadas na atenção comunitária e territorial, em uma rede pública de serviços diversificada e com atuação multiprofissional. A Política reafirma o protagonismo e a ampliação dos direitos de cidadania das pessoas com sofrimento e/ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
As instâncias do controle social, como fiscalizadoras das políticas públicas, lutam por democracia e participação social e representativa nas discussões de qualquer política que se relacione com o Estado e que venha a ser executada. Reafirmamos uma posição contrária às investidas de retrocesso e "modernização" de velhas instituições e práticas que ameacem a dignidade humana, os direitos humanos e o cuidado em liberdade no campo da saúde mental e atenção psicossocial.
Por isso, o CNS reitera que qualquer ato que se relacione a Política Nacional de Saúde Mental deve respeitar os preceitos instituídos, devendo ser discutido democraticamente nas conferências nacionais temáticas e nas instâncias coletivamente representadas, com o protagonismo de usuárias/os e trabalhadoras/es da saúde mental.