Aos 82 anos, Martinho da Vila volta a fazer o samba dos terreiros que marca sua carreira desde 1969. Seu disco mais recente, Martinho 8.0, veio em 2019 belo, mas melancólico, respeitando o tempo de um octogenário que parecia entrar em uma fase de menos partidos e mais reflexões, sem a euforia das festas. Mas agora, com Rio Só Vendo a Vista, uma frase com dois ou três significados complementares, ele volta à cadência firmada na pele do pandeiro, quase um gênero seu dentro do próprio samba.
O álbum é uma homenagem ao Rio, com 12 faixas sendo cinco inéditas e algumas praticamente desconhecidos. Outra marca é a reafirmação da família casa-de-bamba que conseguiu criar, em que nem todo mundo bebe, mas todo mundo samba. As faixas Vila Isabel Anos 30, Rio Chora o Rio Canta, Umbanda Nossa e Assim Não Zambi têm a colaboração de um coral formado por sete dos oito filhos de Martinho. A caçula Alegria é uma delas, em sua estreia nos discos do pai.Há uma série de outros simbolismos que marcam essa chegada de Martinho às plataformas digitais em pleno Dia da Consciência Negra. Ao homenagear uma cidade à espera da decisão eleitoral para saber quem será seu próximo prefeito, o tributo vira protesto. “O Rio às vezes é um grande abacaxi, de São Conrado a São João do Meriti”, ele diz em Rio Só Vendo a Vista. Com um pensamento de enredo carnavalesco, O Rio Chora, O Rio Canta lamenta a perda da condição de Capital Federal do País para Brasília, em 1960. E a bela Menina de Rua, em parceria com Rildo Hora, sobre uma marcação de tambores do samba reggae que deu a base à axé music, narra a vida de uma garota sem-teto. Mart’nália canta a voz da criança abandonada e Martinho atua fazendo perguntas a ela. Não se trata de um samba inédito, mas quase. Ele foi feito para a trilha sonora de Você Não Me Pega, de 1995, um musical infantil assinado em parceria com Rildo. A letra acabou ficando pesada demais, mas foi incluída no disco de 1995.
Martinho vive em um país que tem oficialmente renegado a importância das culturas africanas em sua formação. E então, ele lembra das provocações do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Nascimento de Camargo, que o chamou de “vagabundo” que deveria “voltar para o Congo”. “Esse homem quer ser branco num país em que somos todos mestiços.” Sobre a não realização do carnaval no início de 2021, mas no meio do ano, ele diz: “Só deveria haver blocos. Deveriam suspender o carnaval da avenida e só realizá-lo em 2022. Imagina ter de fazer uma festa dessa em seis meses. As escolas não vão aguentar”.
A influência das religiões afro-brasileiras é mais uma vez definitiva em seu repertório. Umbanda Nossa é uma inspiração recente, feita só com atabaques. Uma nova homenagem à religião e talvez tão forte quanto Festa de Umbanda, de 1974, que Martinho recebeu em uma gira, ensinada por um preto velho. Ao contrário do candomblé, corrente de ascendência africana direta, a umbanda foi criada no Rio. “Umbanda é mais light, mais romântica, não conta com o sacrifício de animais”, diz, levantando um vespeiro que poderia ir longe. “Mas veja, todo animal que comemos é sacrificado. E, pelo que sei, mesmo os rituais de candomblé oferecem aos orixás as partes que não são consumidas pelos homens, como orelhas e rabos. As pessoas acabam levando as partes boas para casa. Tem até fiscal da prefeitura que vai a giras esperar o ritual acabar para levar um pouco pra casa.”
Ouvir Martinho é entrar nesse mundo e se ver obrigado a estudá-lo para não passar vergonha. Um universo não catalogado oficialmente que mesmo lideranças raciais só conhecem por ouvir dizer. O samba O Caveira, por exemplo. Martinho ouvia sua mãe dizer que ele não deveria dever nada a ninguém. “O cara a quem você dever será um caveira em sua vida.” Mesmo sem explicitar na letra, caveira também é um exu. Exu Caveira. E foi de sua figura que a mãe de Martinho tirou a frase.
Bamba
Sete dos oito filhos do cantor participam das gravações de um álbum feito para o Rio e, por tabela, à umbanda