Depois de deixar o Tutti Frutti, em 1978, Rita Lee se encontrou com Roberto de Carvalho para virar a chave em 1979, abrindo os horizontes de seu rock and roll particular e criando seu primeiro álbum solo com Mania de Você. Uma cacetada pop que venderia 500 mil cópias. No ano seguinte, 1980, fortalecidos pela fórmula das latinidades que Rita e Roberto criaram quase que como um gênero do próprio rock, lançaram Rita Lee, conhecido informalmente como Lança Perfume, e tudo que havia antes parecia ir pelos ares. Tudo que estava ali emplacou: Lança Perfume, Bem Me Quer, Baila Comigo, Shangrilá, Caso Sério, Nem Luxo Nem Lixo, João Ninguém e Ôrra Meu. Quarenta anos depois, a gravadora Universal relança o álbum em LP e Rita e Roberto falam ao Estadão sobre ele.
A união de Rita Lee e Roberto de Carvalho começou na noite em que Ney Matogrosso levou o guitarrista a um jantar na casa da cantora e saiu de fininho ao vê-los dividindo o piano da sala. Isso há mais de 40 anos. Desde então, Rita, a melhor síntese de uma roqueira no país, preserva o casamento mais longevo do meio pop. Não teria algo aí contra o rock and roll das rebeldias e das inquietudes? "Não há nada mais rock’n’roll do que o tesão mútuo e estratosférico entre parceiros musicais que levam o que fazem na cama para o público. Pra você ter uma ideia, às vezes, certas dondocas cobram de mim que eu continue a pintar o cabelo de vermelho-menstruação me dizendo: ‘Você destruiu sua imagem/ marca’. Mas rebeldia a gente fez a vida inteira. E quando você sente que o verdadeiro amor não acaba nunca - mas só melhora com o tempo - dane-se o rótulo." Essa é Rita, em uma rara resposta quase séria o tempo todo.
A seu lado está Roberto de Carvalho, o homem que esculpiu as ideias roqueiras de Rita com tratamentos harmônicos modernos e entendeu também quando ela trouxe os boleros. Ele esbarra em algo forte: Rita, para alguns dos antigos fãs dos Mutantes e do Tutti Frutti, indispostos ao ouvi-la cantando Lança Perfume com os teclados de Lincoln Olivetti, poderia se tornar uma "diva de gueto". Isso se só fizesse o que eles esperavam. "Essa coisa da latinidade é atribuída a mim, mas é muito dela também, basta lembrar de Bandido Corazón, um bolero composto por ela e gravado por Ney. O que estávamos fazendo em música era completamente orgânico. Estávamos vivendo um romance intenso, estamos até hoje dentro de uma circunstância extremamente adversa de ditadura e prisões. Entretanto, o que brotava era uma música sensual, intensamente romântica, pra cima e, evidentemente, pop. Soma-se a isso a percepção óbvia de todo mundo de que a vocação da Rita não era exatamente permanecer como diva de gueto. Ela era muito mais do que isto. E assim foi."
O assunto volta para Rita e a faz falar sério mais uma vez. Afinal, por que o canto de um país em que os negros estão tão presentes na formação musical não se deu por vozes negras? Não há roqueiras negras, cantoras de MPB negras nem de bossa nova e a rainha do samba é uma branca, Beth Carvalho. Ela diz: "Essa pergunta também me faço... Inacreditável o Brasil ter sido um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, começa daí. Até hoje existe aqui um evidente racismo, coisa de quem ainda está espiritualmente nas trevas. Assim como sabemos que há misóginos camuflados de ‘cavalheiros’ e que no fundo gostariam que as mulheres ficassem no tanque. Uma negra com um p... vozeirão que veio ao mundo para apertar o ‘f...’ e se tornar rainha é Elza Soares. O Brasil está repleto de Elzas. O que lhes falta é justamente uma oportunidade, difícil com a visão tacanha de gravadoras, de panelinhas de rádios e de TVs. O bom é que agora, por meio da net, a gente fuça e acaba encontrando várias pérolas negras."
E a conversa retorna ao disco produzido por Guto Graça Mello e a Roberto, que fala sobre Lincoln Olivetti. O tecladista que deu a linguagem pop aos anos 80, morto em 2015, era muitas vezes criticado por "pasteurizar" os álbuns de MPB e estava no time de Lança Perfume, o álbum. Ele e mais Mamão ou Picolé na bateria, Jamil Joanes no baixo, Robson Jorge na guitarra e, em Ôrra Meu, um outro baixista chamado Luis Maurício, que logo seria Lulu Santos. Sobre Lincoln, Roberto diz: "Tocar com ele foi das melhores coisas que aconteceram na minha vida. Um músico incrível e sem ego, assim como os outros que participaram. Rita e eu chegávamos com a música pronta, formatada, piano e ou violão e voz, apresentávamos aos músicos já prontos para gravar e ficávamos passando e repassando até chegar no ponto de estar soando realmente legal. Era corpo e alma de banda. Não existiam arranjos pré estabelecidos. Tudo orgânico, tudo zero estresse. O alto astral estava presente e ficou registrado por todo o disco."
'Quem comprou o pop fui eu'
Rita fala mais sobre o álbum que sedimentou sua parceria com Roberto de Carvalho:
Quando o álbum saiu, alguns a chamaram de vendida. Será que dá para entender, 40 anos depois, o que eles queriam dizer?
Sempre vão existir as tais ‘viúvas’ cobrando o defunto a voltar à vida - ou aquelas que fazem vodu quando um artista se casa. Na verdade, acho que quem comprou o sistema pop fui eu. Depois de minha parceria musical e amorosa com Roberto, meus horizontes se abriram e, por ser filha do tropicalismo, desfilei sem pudores por vários estilos.
Nelson Motta diz que Elis foi a voz mais rock and roll da MPB e você, a mais MPB do rock and roll. Você se inspirou em alguma cantora em especial?
Sou do tempo dos vozeirões e vozeironas. E por saber que nunca tive potência vocal, me inspirei um pouco em Nara Leão, que eu achava chiquérrima arrasando com voz miudinha e cheia de charme.
Por outro lado, minha figura física era magricela demais para me considerar cantora, então parti para ser uma figura andrógina, uma mulher que, se lhe desse na telha, podia ser homem também.
Você fez Baila Comigo depois de sonhar, não foi?
Acordei, peguei o violão e a fiz em cinco minutos. Às vezes, vêm pedaços de uma melodia, um verso de letra que por vezes esqueço, mas fico o dia cantarolando, buscando um sopro.
'Nós temos uma música nova'
Roberto fala um pouco mais do som que sedimentou ao lado de Rita em 1980.
O rock e o blues podem aprisionar a linguagem de um músico para sempre. Podemos dizer que você conseguiu se libertar disso?
A minha origem está no piano e nos teclados. Mas eu ouvia e tocava de tudo, música de todo lugar, de todas as etnias, muita MPB e tangos, boleros, blues, jazz e muito rock, claro. Mas foi depois de ouvir Beatles que resolvi partir para a guitarra. E tem uma época grande que a base era boogie woogie no piano, rock e blues na guitarra e bossa nova no violão. Mas sem sectarismo.
É raro vê-lo envolvido em gravações com outros artistas sem que você esteja ao lado de Rita, que não faz mais shows. O que explica sua pouca presença nos palcos ou nos estúdios sem Rita?
Acho que é porque não me convidam (risos). Ou então, quando convidam, vem uma intenção subjacente de trazer a Rita junto, o que não é necessariamente possível. Não tenho vontade de palco. A retirada estratégica foi de nós dois. Estamos vivendo numa espécie de retiro já há seis anos. E recentemente até fizemos algumas aparições no Instagram, mas um lance espontâneo, sem pretensão.
Como anda sua música interna? Não é preciso fazê-la sair de alguma forma? Ou você não tem essa necessidade de tocar e compor com mais frequência?
Intensa. Temos música nova. Logo mais virá à tona.