De 1º de janeiro a 30 de outubro Mato Grosso registrou 650 novos casos de HIV/AIDS no estado. Embora os números sejam menores do que os computados em 2019, quando houve 1.467 novos registros, a estatística não é animadora. Para a superintendente de Vigilância em Saúde de Mato Grosso, Alessandra Moraes, o que ocorreu foi o não acesso da população aos testes, em função da pandemia. A testagem caiu por ser um ano atípico. E a maioria desses novos casos está entre jovens de 20 a 39 anos.
“Em 2020, considerando em torno de 40 anos de luta contra essa doença que dizimou milhares de pessoas no mundo, o que é claro é que nós enquanto profissionais de saúde, pacientes, sociedade talvez tenhamos trilhado um caminho de dificuldade de conversar sobre prevenção. O discurso de que o outro tem que usar preservativo é falho. A forma de diálogo ativo não toca o coração das pessoas no sentido de usar o preservativo em todas as práticos. Isso fica óbvio quando se observa o crescente de casos no Brasil e no mundo de adultos jovens contaminados. O país distribui preservativo, não precisa pagar por isso desde que se implementou no SUS a terapia antirretroviral. É paradoxo que um país que consegue dispensar medicação e preservativo continue registrando aumento do número de casos. Isso mostra que o nosso diálogo não é efetivo. A campanha de prevenção unilateralidade de usar preservativo não é efetiva”, alertou a infectologista Andreia Neri.
A médica lembra que no momento em que vivemos a pandemia da Covid-19 a população tem dificuldade para usar a máscara corretamente, o que mostra o quanto é difícil cumprir à risca a determinação de uso de preservativo em toda e qualquer relação sexual, que envolve a questão hormonal e sentimentos, como a paixão.
Para minimizar drasticamente o risco de contágio pelo vírus HIV, a infectologista afirma que o melhor caminho é a prevenção combinada, principalmente para as populações consideradas chaves. São elas os casais soro discordantes (em que um é portador do vírus HIV e o outro não), gays que tenham relações sem preservativo ou com muitos parceiros, pessoas trans e homens que fazem sexo com homens.
Um dos caminhos de prevenção combinada, por exemplo, é o uso da Profilaxia Pré-exposição (PREP), que garante 99% de prevenção. “A PREP está em voga no Brasil desde 2018. Ela foi incorporada ao protocolo clínico e terapêutico do Ministério da Saúde e é uma dessas teias de prevenção combinada”.
A PREP é a combinação de dois antirretrovirais, contidos em um único comprimido, que deve ser ingerido diariamente. “A pessoa passa por várias avaliações, inclusive exames de sangue, laboratoriais, sorológicos, testes trimestrais de HIV, conversa com psicóloga, enfermeiro, médico. Essa atenção especial, tudo isso, além de orientar para a utilização do preservativo – que protege de adquirir outras doenças – esse combo é fundamental para melhorar comportamentos na exposição contra agentes virais. Quando isso acontece os estudos mostram que a vida melhora. A pessoa vive de uma forma mais saudável. Se não usava preservativo, passa a usar. Se não se testava, agora se testa, se tinha uma quantidade grande de parceiros, diminui o número de parceiros. Estudos demonstram isso. Medicação, educação e cuidado continuado melhoram a vida de todos, além da pessoa que recebe os cuidados, de todas as que estão no círculo dela. Isso salva vidas”.
A infectologista ressalta que o que ainda dificulta muito o consumo da PREP, por exemplo, é o estigma que se instalou desde o início da pandemia, na década de 80.
“Depois de 40 anos ainda dificulta a relação do mundo com a doença. Não é sobre o HIV, é sobre o sexo. Temos uma dificuldade de lidar com a própria sexualidade. Se eu não consigo lidar com a minha, condeno a do outro. Não acontece apenas com o paciente, mas também com os profissionais da saúde que tem dificuldade de lidar com os pacientes que tem indicação para tomar profilaxia”, revela Neri.
Pandemia de HIV x Covid-19
Diferente do que se vivencia com a pandemia da Covid-19, em que há um esforço mundial em busca da cura para a doença, essa mobilização nunca foi vista para encontrar uma saída para a contaminação pelo HIV. Com mais de 40 anos de existência, ainda não foi encontrada uma cura.
“Nunca viu esforços dessa monta em relação ao HIV que se vê em relação ao Covid. Isso escancara a dificuldade de lidar com a sexualidade, considerando a castração que existe. É preciso respeitar-se para respeitar o outro. Essas analogias demonstram o quanto somos relativistas. Se me identifico com uma doença que se transmite pelo ar, me envolvo com ela. Mas pelo sexo não, sexo é sujo. Outro sexo é errado que não seja o heteronormativo, daí eu não me envolvo. E é isso que a gente vê. Essa distância faz que com que a gente sempre coloque que como é do outro, não é meu”, analisa Neri.
No entanto, ela alerta que todos nós convivemos com alguém que é soropositivo e não sabemos. “Todos nós no Brasil temos pessoas na família com HIV e não sabemos. O estigma é tão grande que ela jamais se sentiria à vontade para falar com a maioria das pessoas da família. Você vai na academia, no shopping, no cinema, abraça, beija pessoas com HIV e está tudo bem”.
Manter a infecção por HIV no anonimato, segundo Andreia Neri, é possível hoje em dia pelos avanços conquistados nos tratamentos oferecidos a quem se descobre soropositivo.
“Essas pessoas hoje em 2020 são diferentes das pessoas do início da pandemia, quando não tinha tratamento que poderiam tem. Em um passado recente tratava apenas uma parte das pessoas. Hoje todos podem e devem ser tratados. A meta é reduzir a carga viral para um limite indetectável para que não tenha nenhuma doença ligada ao HIV e possa viver quantos anos quiser viver, como qualquer outra doença crônica. Pare de estigmatizar algo que tem tratamento, controle”.
Psicológico de quem vive com HIV
A psicóloga Luciane Carneiro Diniz afirma que o amparo familiar é muito importante para a pessoa que se descobre soropositiva. Embora exista a dificuldade de dar a notícia e o medo pelo preconceito que ainda é muito forte na sociedade brasileira, ela explica que o melhor caminho é revelar o quadro primeiramente para uma pessoa que se mostra mais aberta a questão e que será um apoiador incondicional na pessoa que vive com o vírus.
Diniz pontua que uma depressão pode surgir no processo e por isso é necessário que a pessoa possa contar com ajuda especializada para lidar com o problema. Indica a procura por psicólogo ou psiquiatra e pondera que frequentar grupos de apoio também é uma ferramenta valiosa no processo.