CONTEMPORANEIDADES Quarta-feira, 12 de Agosto de 2020, 09:36 - A | A

Quarta-feira, 12 de Agosto de 2020, 09h:36 - A | A

NINA RICCI

Escrevo para estar em silêncio

Nina Ricci

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Artista, licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e recentemente ingressou oficialmente na formação continuada em Artes do diálogo pela Universidade de Nós Pessoas. @ninamricci

Embora a escrita seja uma forma de falar das coisas, acredito que seja também, um ofício de introspecção, reflexão e elaboração daquilo que se passa. Especialmente nesses tempos de excessiva agitação, escrevo para experimentar um pouco de silêncio... Distante das interações virtuais ou sociais, falo de um silêncio interno que nos permite ouvir uma coisa de cada vez. Só posso escrever se conseguir escutar: os pensamentos, as falas, emoções, informações... mas como tudo isso costuma nos derrubar de uma só vez, junto essas palavras no anseio de trazer a escuta para a pauta do dia.

No teatro exercitamos intensamente a experiência de escutar com o corpo todo, isto é, abrir os ouvidos, a pele, os olhos, os sentidos, toda a atenção para alcançar uma visão periférica, capaz de observar vários pontos ao mesmo tempo. Encontramos maneiras de organizar o nosso corpo para ver e ouvir além, um estado receptivo aos estímulos que chegam até nós. Falamos de um corpo-vivo que é ao mesmo tempo tensão e relaxamento. Tensão para ser capaz de responder de maneira rápida e eficaz. Relaxamento para que a criação possa vir à tona em suas infinitas possibilidades. 

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Noto que com esses termos essa noção de escuta tenha parecido algo complexo demais. Talvez porque nesse modo de vida que estamos, passamos muito tempo inertes, longe de nós mesmas/os, e assim nos esquecemos de habilidades que sempre foram nossas. Mas se pensarmos como algo natural de toda gente humana, deixa de ser tão complexo. Escutar é como respirar conscientemente, não é preciso um grande esforço, é preciso que exista uma intenção e a ação em si. (Vejam que até mesmo respirar deixou de ser uma habilidade natural e, adoecidos, precisamos reaprender um processo tão elementar).

shhh sh shhh… Respira. Ouve. 

Respira

Escuta

Ouve seu corpo... Solta o ar, solta as tensões mais evidentes

solta o maxilar 

Passa as mãos pelas orelhas, pressionando de leve

Abre os ouvidos

Agora podemos recomeçar, será que podemos ir mais fundo e falar da escuta de uma outra perspectiva? 

Recentemente venho lendo sobre Lugar de fala, a partir da voz de Djamila Ribeiro, Grada Kilomba e outras autoras. Elas falam sobre os processos históricos que ditaram qual a cor das vozes autorizadas a falar, o que podem falar e por quem são ouvidas. Então, refletindo sobre Branquitude e sobre posturas antirracistas, deparo-me novamente com aquilo que é elementar: a urgência de aprender a ouvir. Ouça… Todas as comunidades não-brancas estão falando, gritando há séculos e, ainda assim, permanecemos no estágio mais primário da negação. 

Então proponho começar silenciando - aquele silêncio do qual falava lá no início. Depois ouvindo as expressões que fazem parte da nossa fala cotidiana (verdadeiras aberrações), ouvindo as reações que o nosso corpo foi condicionado e que revelam as minúcias onde o racismo se expressa. Às vezes é um olhar, um pensamento fugaz, uma ação de esquiva, um comportamento defensivo - como se não fôssemos nós brancos a verdadeira ameaça.

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Retomo uma vez mais as noções que o teatro me trouxe: quanto mais nosso corpo se abre a esse tipo de silêncio e a essa escuta, mais é possível reconhecer tudo aquilo que está em nós. Não está fora “aqueles racistas…”, ou “eu sou branca, mas sou diferente dos demais…”. Trata-se de algo estrutural e que está internalizado. Nós nunca deixaremos de ser brancas/os e este fato precisa estar em tudo o que pensamos e fazemos. Ser branca/o e buscar práticas antirracistas, reconhecer o tempo todo os lugares de poder e privilégio que estamos inseridos. E que precisam ser revistos, renunciados, deslocados - caso a gente tenha de fato algum interesse em deixar de performar a ‘raça soberana’ e a ‘neutralidade’.

Nós, pessoas brancas, um dia subimos na Grande Montanha, passando por cima de tudo (pessoas, animais, natureza…). Lá em cima nos sentamos para nomear, ditar e definir todo o resto do mundo - os outros. E ficamos surdos, porque falamos sem parar e só escutamos as vozes brancas (que embora possam ter muito a contribuir, certamente são limitadas pela experiência que esse lugar de fala produz).

Desfazer a Grande Montanha exige compreender sua natureza, compreender cada elemento que a constitui, como crescem seus espinhos; o perfume sedutor que criamos e que perturba os sentidos, dando uma falsa impressão de que tudo está em ordem - a dita normalidade. E como me parece impossível compreender alguma coisa sem parar para escutá-la, intuo que para desfazer a montanha é preciso também dedicar um tempo de qualidade, de silêncio. Assim, perceber as diferentes vozes e sons que sempre conviveram conosco, mas foram violentamente abafadas por nós. 

Inicialmente eu pensava em aludir neste texto que a montanha poderia ser uma duna de areia, que se desfizesse pouco a pouco com o passar do vento que sopramos. Mas agora me ocorreu que não. Talvez a montanha seja ainda muito importante para que a gente (branca) vivencie o processo de reconhecimento e descida de forma lúcida. Para que a gente desça, olhe lá debaixo essa imensa montanha e perceba que ela nunca nos pertenceu - nós é que a ocupamos de forma abusiva. Para que a gente jamais se esqueça das muitas montanhas, das muitas terras que invadimos, colonizamos, colocamos nossa bandeirinha inventada e chamamos pretensamente de “nossa”, exterminando e subjugando toda forma de vida que já existia ali.

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Essa urgência do lugar de silêncio para aprender a ouvir, é algo que não penso só: do meu lugar, faço coro a outras vozes que vieram antes de mim e que falam também neste momento, sem as quais eu seria incapaz de elaborar tudo que escrevi até aqui. Que no silêncio dessa escuta, a gente saiba ouvir uma coisa de cada vez... 

Elaborando o que chega até nós... 

Compreendendo o nosso Lugar de fala… o que isso implica... 

Conscientes de que nenhum processo histórico é linear ou está garantido.

Ao olhar a Montanha, distantes da culpa paralisante, sejamos capazes de nos responsabilizarmos por esse processo histórico, exercitando em nossa melhor potência a capacidade de ouvir, aprender e agir diante das narrativas que diferem de algum modo das nossas. O diferente é apenas um ponto de vista. Que a gente conheça outros sentidos do que possa ser “nosso”: não enquanto propriedade, mas enquanto compartilhamento e coexistência.



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Leo 15/08/2020

Montanha mesmo, talvez com mais porções de rocha do que de terra. Recordo-me da primeira vez que fui a Cuiabá e um colega me levou a uma pizzaria. Comecei a sentir um mal-estar e não entendia o motivo. Uma sensação de que alguma coisa estava errada. Então, olhei à volta. Todas as pessoas sendo servidas eram brancas. As que estavam servindo, negras ou de feições indígenas. Depois, constatei algo parecido em outros lugares da cidade. Eu, branco, estava, portanto, sentado e sendo servido. Não poderia me dar ao luxo de não me perguntar o que eu tinha a ver com isso nem fechar os olhos para o fato de que até conseguir pensar a respeito do que me incomodava ali me fora permitido por sempre percorrer as partes mais altas e arejadas da montanha. Parabéns, pelo texto, Nina!! Muito necessário!

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