Uma vez uma grande amiga partilhou o texto de uma mulher que me marcou profundamente. Até hoje busco as palavras dela para reler, mas não encontro. Digito no oráculo: desistir, texto sobre desistência... e tudo o que encontro são frases feitas sobre a importância de NÃO DESISTIR JAMAIS. Nunca desista dos seus sonhos, não desista de você, nem das pessoas, desistir é o verdadeiro fracasso.
No entanto, desistindo dessa corrente que tantas vezes nos afoga, essa mulher foi a primeira que me falou sobre seu processo de desistir.
Nesse texto ela narrava as inúmeras situações em que precisou desistir de ser algo que queria porque a vida apresentou outros caminhos, desistiu do que havia planejado porque não fazia mais sentido, desistiu muitas, muitas vezes em seu percurso. E a maneira incomum como ela contava tudo isso, me fez pensar que talvez desistir seja mesmo um ato natural. Às vezes é a saída que encontramos para determinadas situações. E tudo bem.
Pode dizer das nossas fragilidades? Dos nossos fracassos? Sim, e o que tem de pior nisso?
Por que raios de ignorância a gente é ensinada a querer "acertar" sempre, querer bem suceder sempre, triunfar ouvindo as trombetas douradas?
Pois eu desisto dessa narrativa.
Escrevo para desistir mais uma vez.
Do sucesso que vem vazio e me toma a vida,
das relações que me preenchem de tudo que não sou eu,
de me alimentar do que destrói,
de seguir os planos que um dia cantaram no coração e só não podem mais ser.
Desisto do velho normal, do novo normal, desisto de qualquer normalidade que queira convencer.
Desisto do mundo como dizem que ele é e como queria que ele fosse. Contemplo o mundo e busco sentir sua natureza.
Desisto das ideias fixas que já tive sobre as pessoas e sobre mim.
Desisto de querer a todo custo fazer as coisas darem "certo".
Desisto de encontrar um amor, já sinto o amor em mim.
Desisto de saber de tudo, desaprendo de pouco em pouco.
Desisto de dar conta das exigências todas, pois simplesmente existo, não exijo.
Sabe quando estamos brincando de cabo de guerra e, na ânsia de vencer, seguramos tão forte a corda que ela queima as duas mãos? Às vezes desistir é perceber que aquela guerra não faz sentido pra gente e soltar a corda pode ser melhor pra gente do que fazer parte dos vencedores.
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Vejam queridas pessoas, que certamente celebro a vida até os últimos dias, celebro profundamente as coisas dessa vida, desse mundo. E é por isso mesmo que escrevo sobre desistir. Porque é natural, é natural compreender que essa noção de "acerto" é um ponto de vista sobre um acontecimento. Que a noção de "fragilidade" é um ponto de vista sobre um modo de sentir.
São narrativas e elas ajudam a elaborar o que nos acontece. Mas narrativas podem ser reescritas, recontadas, como bem sabemos. Narrativas são histórias criadas a partir de um ponto de vista, que como bem sabemos, provavelmente não será capaz de contemplar toda a complexidade da situação.
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É natural aceitar que o que chamam de "fracasso" é apenas um nome que deram para experiências que saíram diferente do que imaginamos.
Por celebrar a vida eu não deixo de honrar a morte. E, por celebrar algumas mortes internas e desistências naturais, eu não deixo de honrar a vida.
O grande desafio desses tempos, do ponto que consigo ver neste momento, é aceitar a multiplicidade das circunstâncias, do que somos e sentimos, das camadas sociais, raciais, de gênero.
Coerência talvez seja reconhecer que a gente é muita coisa ao mesmo tempo, e que é natural que a gente não esteja sempre alinhada entre pensar, falar, sentir, agir. Quem foi que disse que a gente precisa ser alinhada? Talvez a gente seja um monte de pontinhos esparsos, pontas soltas, emaranhados… outrora curvas belas e surpreendentes - como a natureza que é tão vasta e múltipla.
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Então escrevo para desistir.
Escrevo para que desistir seja parte de mim, parte da vida.
Escrevo para lembrar das vezes que desisti, e foi um grande alívio.
Escrevo para lembrar das vezes que desistir foi uma grande dor.
Escrevo para lembrar desse ano que me mostra a cada dia do que preciso ou quero desistir.
Escrevo para firmar um compromisso comigo de intuir mais, e ser capaz de discernir sobre as desistências que me cabem.
Ser capaz de acolher os processos.
Escrevo para que desistir seja somente isso. Um ato.