Em uma entrevista reveladora ao programa Nossa República, a ex-ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, Maria Cláudia Bucchianeri, abordou a necessidade urgente de regulamentar as big techs e aprimorar a transparência nas atividades da internet. Bucchianeri destaca que a vida digital, onde os brasileiros passam em média 10 horas por dia, requer regulamentação semelhante à vida no mundo físico, onde regras de convivência e limites são naturais e necessários.
A ex-ministra chama atenção para o fato de que cerca de 65% do tempo online é gasto nas mídias sociais, concentrando nossa existência em poucas plataformas que geram lucros bilionários. Segundo ela, é fundamental entender e regular como a existência digital se desenrola, criando critérios para evitar a escalada de violência, polarização e discurso de ódio, que fragmentam a sociedade.
A manipulação por algoritmos e a cultura do ódio nas redes sociais são aspectos que preocupam Bucchianeri. Ela critica a falta de transparência sobre como os algoritmos são programados e quem os cria, destacando a necessidade de diversidade entre os programadores para evitar vieses de preconceito estrutural. Segundo ela, é essencial exigir transparência nos algoritmos para que o público conheça as regras do jogo digital.
Bucchianeri também aborda o fenômeno das bolhas filtro, onde os algoritmos interpretam nossas pegadas digitais e nos isolam em câmaras de eco, privando-nos de diversidade e contraditório. Ela destaca a importância de discutir a legitimidade de certos modelos de negócio das plataformas e os riscos associados ao microtargeting em contextos políticos.
Finalmente, a ex-ministra reflete sobre os desafios enfrentados pelo judiciário, incluindo o TSE e o STF, no combate à desinformação e na busca por uma legislação que forneça mais ferramentas para lidar com esses problemas. Bucchianeri enfatiza a importância de um debate sério e descontaminado sobre a regulação da internet, considerando-a imprescindível para a manutenção da integridade democrática e do direito de escolha do eleitor.
Esta entrevista com Maria Cláudia Bucchianeri, disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=4zOYolsMVfc) fornece insights valiosos sobre os desafios e a urgência de regulamentar o ambiente digital, um tema que ganha cada vez mais relevância no cenário atual.
Confira a seguir a íntegra da entrevista:
Mauro Camargo - A senhora se posicionou nesse evento da Academia de uma forma muito contundente na defesa da regulação das big techs, da regulação das atividades na internet. O que leva a senhora para esse caminho?
Maria Cláudia Bucchianeri - Olha, é inevitável, né? Como eu disse na minha fala hoje, a gente vive quase mais no mundo online do que no mundo físico. O brasileiro passa, em média, 10 horas por dia na internet. Então, partindo da premissa de que a pessoa dorme um pouquinho, a gente pode dizer que mais da metade do dia ele gasta online. E aí, ele vive, a gente tem uma experiência humana na vida online, então ele se informa, debate, interage, compra, paquera. Existe hoje uma vida desenrolada no mundo digital. Assim como a vida no mundo real é regulada, no mundo digital também deve ser. A diferença é que essa nossa existência online, essas 10 horas que a gente gasta do dia na internet, são concentradas quase 65% nas mídias sociais.
Mauro Camargo - A senhora acha que é possível, de alguma maneira, conter essa manipulação dos algoritmos? Conter essa coisa que desenvolve, como a senhora citou, a cultura do ódio, da divisão entre as pessoas? Enfim, a própria manipulação comercial que existe nas redes por conta dos algoritmos.
Maria Cláudia Bucchianeri - Hoje a gente não tem sequer transparência sobre esses algoritmos, não é? A gente não sabe quem faz, quem são esses programadores. A pluralidade nesses programadores é um projeto de vida, por exemplo, da Melinda Gates. Ela diz que os programadores dos algoritmos não podem ser só homens brancos, porque senão você reforça o viés de preconceito que essas pessoas carregam naturalmente, porque são preconceitos estruturais. Nós não sabemos quem faz, como são, quais são os critérios que as grandes plataformas usam por meio dos seus algoritmos para nos encaminhar produtos que são assemelhados a produtos que já compramos. Quais são os critérios e quanto elas recebem por isso? Então, acima de tudo, quando a gente fala de algoritmo, precisamos exigir transparência, porque estamos sendo expostos a informações, notícias e conteúdos por meio desses algoritmos e não sabemos quais são os critérios. Não há transparência nessa composição. Então, antes de qualquer coisa, quando falamos de regulação das redes, estamos falando de uma coisa básica: transparência. É a mesma coisa que entrar em uma sociedade física e não saber quais são as regras do jogo.
Mauro Camargo - Além da questão comercial que a senhora trata, de empurrar, de mostrar conteúdos que não foram solicitados e que acabam muitos deles levando as pessoas a pensarem de uma determinada maneira, acreditarem em determinados fatos que não existem, que não são reais, isso é um grande risco hoje para a sociedade, não?
Maria Cláudia Bucchianeri - Os estudiosos da internet falam muito dos futuros, as bolhas filtro. Como é um negócio, isso é que a gente precisa entender. As grandes plataformas são empresas privadas, então elas são movidas e é natural que seja assim, pelo lucro. A gente não condena o lucro, mas a gente precisa discutir um pouco a legitimidade de determinados modelos de negócio. Alguns modelos não devem ser permitidos. Então, quando a gente fala de bolhas filtro, a gente está falando de algoritmos, máquina e inteligência artificial e alguma intervenção humana também, interpretando as nossas pegadas digitais. Tudo que a gente navega quando entra em rede deixa as nossas pegadas digitais, que geram o que chamamos de big data. Isso diz quem eu sou, quais são os restaurantes que eu gosto, porque eu faço uma reserva online. As minhas pegadas revelam quem eu sou. A partir dessa informação, os algoritmos filtram, fazem uma interpretação de quem eu sou, do que eu gosto e começam a me bombardear com informações, com viés de confirmação. Então, eu só recebo notícias que o algoritmo entendeu que é o que eu quero. Não há contraditório, não há diversidade, não há pluralidade.
Mauro Camargo - E a senhora, como ministra do TSE, vivenciou nos últimos tempos essa questão muito forte e que afeta de uma maneira grave a democracia, que pode trazer problemas sérios. Como é que o judiciário, de uma maneira geral, e aí não só o TSE, mas o supremo e outras cortes, estão vendo essa questão? Parece que há um empenho no sentido de se buscar um caminho para que haja um controle nesse sentido.
Maria Cláudia Bucchianeri - É um desafio complexo, porque realmente conter fake news é um negócio muito difícil. A gente brinca que é como enxugar gelo, mas o TSE foi muito combativo na luta contra a desinformação. A desinformação compromete o próprio direito de escolha do eleitor, porque o eleitor tem o direito de fazer a sua escolha num ambiente informativo minimamente íntegro. A partir do momento que você manipula e dissemina a desinformação, compromete a liberdade de escolha do eleitor, e isso é muito ruim para a democracia. O tribunal já vem desde 2018 se empenhando no combate à desinformação. Em 2022 isso foi muito intenso, também sob a condução do ministro Alexandre de Moraes. O Supremo Tribunal Federal também está muito empenhado. Mas o ideal é que a gente tivesse uma legislação que fornecesse mais instrumental para o poder judiciário. O poder judiciário tem se empenhado enormemente, acho que tem feito um bom trabalho, mas trabalha com as ferramentas que ele tem. Por isso que é importante que o Congresso debata, como diz o ministro Gilmar, de forma desarmada. Não é um debate simples, evidentemente que há posições prós e contras em algum ponto ou outro.
Mauro Camargo - Já influenciadas um pouco também por essa coisa da manipulação, né? Porque muita gente no Congresso tem pensamentos assim, distorcidos, por conta disso, não?
Maria Cláudia Bucchianeri - Precisa descontaminar o debate porque é um debate importante. O mundo inteiro está travando esse debate com muita seriedade. É um debate difícil, mas é um debate imprescindível. Eu não tenho a menor dúvida. A gente precisa tomar a sério a urgência de uma regulação, até para que a gente forneça ao poder judiciário o melhor instrumental possível para que ele possa trabalhar.